viernes, mayo 19, 2006

A falta da falta


A falta da falta não é o avesso do avesso. Não é um jogo de soma zero. É cavar mais fundo e chegar onde não tem mais nada. Onde nada faz sentido. Onde só há dor em estado puro. Que anestesia todo o resto. Qualquer pensamento, qualquer sentimento, qualquer migalha de vida que ainda tenha resistido. É como diabo verde descendo pelo ralo da pia e arrastando tudo. Não se pode confundir a falta com o nada. A falta é um espaço vazio dentro da gente, que logo se incorpora à nossa matéria. Sim, somos feitos também de buracos vazios. Seríamos insuportáveis sem eles. A completude idiota de um saco de sucrilhos tamanho família. A impossibilidade de Baudelaire. Eu gosto que sejamos assim. É como se fôssemos música, feitos de sons e silêncios. Não há melodia sem os silêncios. Posso tentar também outra metáfora para os mais prosaicos: é como linguagem básica de computação. Código binário: 1-0-1-0-1-1-0-0-0... Imaginar que todas as coisas que eu possa escrever no meu computador. As mais banais e grotescas; as mais sinceras e emocionadas, no final das contas, todas se resumem a uma seqüência de zeros e uns. E não existiriam sem os zeros. Não existiria comunicação no mundo de hoje se não fossem os zeros à esquerda. Tem muita beleza nesse espaço vazio. Violinos que choram. Contrabaixos que resmungam. A voz da cantora de samba que fala de tristeza e desesperança. Poesia. Prosa poética. Suicídios. E tem tanto o que fazer quando caímos nesses buracos. Como um quarto bagunçado que temos que arrumar no sábado de manhã. A gaveta de meias remexida. A roupa usada no canto. O resto do sanduíche. Os livros espalhados no chão. Colocar cada lembrança no seu lugar. Ficar aí até terminar todo o ritual: sentar no pé da cama, fumar um cigarro, chorar, lamber a lágrima salgada no canto da boca, assoar o nariz, sorrir com ternura com os olhos postos no infinito, deixar a última lágrima escorrer, limpá-la com a manga da camisa para não ter que ir pegar mais papel higiênico no banheiro. Sofrer mais um pouquinho, pensar numa canção, quem sabe compor uma, escrever um poema, rabiscar no bloco de papel ao lado do telefone. Emudecer numa melancolia boa. Sentimos a falta de várias maneiras. Às vezes ela cutuca o peito e dói. Às vezes só de birra ela entala no caminho do esôfago e impede até a saliva de passar. Alguém que passa na rua com o seu perfume. E me paralisa no meio da Avenida Diagonal. Nos fins de tarde de domingo, ela salta na minha frente e dança como um macaco gozador. Para depois se reconciliar, pedir desculpas e voltar de cabeça baixa. E eu sempre desculpo, porque é tão bom quando ela volta. Porque a pior coisa que pode acontecer é a impossibilidade da falta. Isso sim é perder o chão, as estribeiras. Perder completamente as referências. Não tem o menor sentido olhar essa cidade e passear por ela sem pensar na falta que você faz. No que você gostaria de ver nela. No que faríamos juntos. Onde eu te levaria. Te mostraria meu parque preferido. Uma loja onde vendem cartazes de cinema. Iríamos em um restaurante árabe. Tomaríamos um café em silencio, lendo o jornal que o cliente do lado deixou sobre a mesa. É como se a cidade não existisse sem a referência da sua falta. Eu olho para o que há ao meu redor e tudo morre no segundo seguinte. E é assim que tem que ser mesmo, porque eu não preciso mais lembrar de nada para te contar. Porque eu não vou dizer nada quando eu te encontrar. Porque talvez eu nunca mais te encontre. Porque eu não posso mais pensar nas fotos que você tiraria. Em qual banco do metrô sentaria. No que diria ao ver o palácio da música. O nada é não ter o direito nem sequer de sentir saudades. É a falta da sua falta, um buraco negro de dor e medo.
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Miss Peaches

1 comentario:

Anónimo dijo...

-pois é assim mesmo que a coisa funciona...